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(Ensaio) Quero Dar-te Tudo

Inês Rochato, em blog

Quero Dar-te Tudo

No outro dia disse-te que queria dar-te tudo.
E bem que é verdade.

Um tudo que vem de dentro, esse que habita em mim, e o outro tudo, o que existe para além de mim, que reside lá fora, e que esteja disponível para eu agarrar, mas que eu também esteja disponível para o agarrar.

Entretanto, por causa dessa vontade comecei a pensar que a vida relacional é muito sobre a disponibilidade.
E mais que a existência de disponibilidade é a reciprocidade que dela se partilha, a vontade, a intenção, o querer alcançá-la, mesmo que na prática isso não aconteça de uma forma tão simples e direta.

Com isto percebi que, vais achar engraçado, que muito provavelmente a tua ideia do que para ti significa dar tudo seja diferente da minha.
Aqui surge um conflito, pois como posso eu realmente te dar tudo se esse tudo for diferente do teu?

Dar tudo a outro, o que é que isso implica na verdade?

A meu ver, existem duas perspectivas, a real, e a ideal (ideal para mim, como é óbvio).

Na real, o que acontece é esse conflito que referi ali em cima.
A partir do dar e receber. Aquele que dá e aquele que recebe e vice-versa.
Esse conflito surge através da falta de disponibilidade e da expectativa que nos habita.

Eu vejo a disponibilidade aqui como um movimento cíclico que permite o fluxo de ações, reações, estados e tendências afetivas.
Quando há falta de disponibilidade, quer no dar, quer no receber, ou até em ambos, o fluxo falha, e a tendência é uma ruptura relacional.
Uma estagnação.
E mais que relacional acredito que seja individual.

A expectativa pode ser um fator com enorme peso, para a falta de disponibilidade, sendo ela criada a partir do significado que damos às coisas.
Se para ti o dar tudo é x, tu esperas que o outro corresponda a esse x.
Isto não acontece de forma consciente, mas sim naturalmente (inconsciente).
E só acontece quando a expectativa ocupa mais espaço em nós que a disponibilidade compartilhada.

Aquele que quer dar tudo a outro quer dar um tudo que corresponda e satisfaça o outro.
O dar tudo, para mim, é o ato de amor, o mais puro que existe, porque nasce da vontade de se dar por inteiro, sem reservas, sem medida.
Mas quando esse tudo não corresponde nem satisfaz o outro, algo começa a deslocar-se dentro daquele que dá.
Começa a procurar dentro do outro o que falta, como se precisasse de descobrir o que ainda não foi dado, o que ainda não foi preenchido no outro por inteiro.

E nesse movimento, começa também a ceder de si, a moldar-se, a perder contorno, a desfigurar-se, porque quer corresponder à expectativa que habita no outro.
Quer dar não apenas o que tem, mas o que talvez não possua, quer dar acima de si e para além de si, quase como se o outro se tornasse maior que o seu dar tudo.

É uma entrega que se transforma em procura, e por sua vez, uma procura que se torna numa exigência silenciosa, porque aquele que dá tudo passa a querer ser aquele que é suficiente.

Isto acontece quando a expectativa daquele que recebe se torna maior que a própria disponibilidade de receber o que o outro tem de si para dar.
Quando o desejo de ser satisfeito (expectativa) é maior do que a capacidade de acolher o que lhe é dado, o dar tudo perde o seu lugar de sentido.
Assim aquilo que se dá encontra um vazio que o destroi, e não um espaço que o abrace.

Então, aquele que dá tudo começa a perceber que o seu tudo, por mais inteiro que seja, nunca será o bastante para preencher tamanha expectativa do outro.

E é a partir desse conflito que surge a ruptura relacional e individual, quer naquele que dá, quer naquele que recebe.
O que dá vê-se esvaziado de si, fragmentado na tentativa de alcançar o inalcançável.
O que recebe perde a capacidade de reconhecer o que lhe é dado, porque o excesso de expectativa lhe cega.

A disponibilidade compartilhada antes ligada pelo encontro, torna-se num campo de batalha.
Já não é troca, é desencontro (conflito).
E a ruptura, inevitável, nasce não da falta mas do excesso que o afoga.

Agora, na perspetiva ideal, no dar tudo não existe esse conflito.
Não é uma tentativa de alcançar o outro por inteiro, muito menos, de tentar corresponder a expectativas do outro, que pode se tornar impossível de lá chegar.

No ideal, o dar tudo é uma expressão natural do ser, nasce da vontade de partilhar, não da necessidade de preencher.
É um movimento que flui de dentro para fora, sem pressa, sem urgência, sem medo de não ser suficiente.

O dar tudo, aqui, é livre.
É estar disponível sem se destruir, é abrir espaço sem se perder.
No ideal, a disponibilidade não é corrompida pela expectativa, porque há entendimento e não projeção.
Há reconhecimento. Ou seja, cada um dá o que é, e o que é, é suficiente.
Isto é, não se dá para corresponder, dá-se porque se sente.
Não se recebe para compensar, recebe-se porque quer se abraçar.
E é nessa troca sem a distorção da expectativa, nessa reciprocidade sem medida, que o dar tudo encontra a sua forma mais simples e, por isso, a mais verdadeira.
E isto, não significa dar mais do que se tem, mas sim dar o que se é, com, presença. Não é o ato de se estender até ao limite, mas o de estar inteiro em si.
Quando vivemos neste lugar, aquele que dá não pede prova nem compensação, apenas espaço. Espaço para o que vem de um, encontre por sua vez, lugar no outro, e o que vem do outro possa repousar em nós. Sem o peso de ter de ser suficiente, apenas com o  compromisso de ser verdadeiro e real.
É aqui que o dar tudo deixa de ser uma procura e se torna num encontro.
Deixa de ser esforço/ sacrifício e passa a ser fluxo.
Porque quando existe essa disponibilidade recíproca não só a dar, mas também a receber, o movimento cíclico de que falei antes mantém-se vivo, e possível de ser visto/ reconhecido.
Não há falha no fluxo, há harmonia no desencontro, porque até o que não se entende encontra o seu lugar no outro e em si.
Deixa de ser um território de exigências e torna-se um espaço de liberdade. Pois o que cada um tem para dar é simplesmente suficiente, não porque é perfeito, mas porque é real.
E talvez seja isso, afinal, o verdadeiro dar tudo, não o ato que tenta ser maior que si, mas aquele que, sendo o que simplesmente é,  é capaz de permanecer.

Portanto, nesta perspetiva ideal, não é um ato de conquista, nem uma tentativa de preencher vazios.
É um movimento que nasce da presença, da verdade, da aceitação de si e do outro. Que não se mede, que não se pesa, que não se compara. E a cima de tudo, ele é para ser vivido. E quando com consciência e respeito encontrará sempre o seu lugar. 

Percebes? Dar tudo, no sentido ideal, é antes um estado de ser do que um ato. Não se mede nem se compara. Não se dá para preencher ou conquistar. É com, nunca sem. Não sei se contigo será possível ou em que medida pode ser, mas sei que dentro de mim há espaço para o teu tudo, assim como há espaço para que o meu encontre o teu.
E sermos diferentes é o que permite que o dar tudo seja real, ou seja, cada um inteiro em si, dando o que se é, sem exigência, apenas presença. .

Se houver reciprocidade na disponibilidade, cria-se harmonia, o tal fluxo, e se não houver, o meu dar permanece à mesma inteiro, fiel a si mesmo, sem ferir nem ser ferido.
Porque primeiro aceito o que me é dado, como me é dado, e na quantidade que me é dado.
E segundo porque  sou eu, e eu sou assim, o que vou sendo e o que vou dando. E por último porque o é exatamente tal e qual como faço amor. Ou como me dou como amiga. E entre uma coisa e outra, para mim não há diferença no dar tudo. 

No fim tudo isto se resume a esta vontade sem fim nem começo, por uma possível horizontalidade relacional.
E é isto, este lugar em que se encontra a minha disponibilidade para te dar este tudo que tenho em mim, e o que fora de mim está disponível para eu agarrar tanto o quanto eu o estou.

Inês Rochato

29-10-2025 

Comentários

Ivânia Vera-Cruz disse…
Belíssimo ensaio, muito pertinente!