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(Ensaio) Os 50 anos entre o Golpe de Estado e a Constituição - Construção de Caminhos Revolucionários: Espaço, tempo e outras dimensões sem amos

Por Pedro Selas, em blog, pareceria com a Revista InComunidade


1. Tempo e Estado

Assinalar através do calendário gregoriano o decorrer do tempo, convida-nos a pôr em perspectiva, talvez, talvez seja uma ratoeira para uma comunicação de massas.

Mas, o que é facto, é que podemos iniciar assinalando a efemeridade e convidando para algo.

Por isso, começar por dar uma pequena síntese da minha perspectiva sobre os acontecimentos que influíram entre o golpe de estado de 74 e a aprovação da constituição, que é a minha perspectiva subjectiva. Não pretende ter qualquer rigor científico, ela nem é assim tão vasta, mas penso o seguinte:

Durante o golpe de estado que derrubava o anterior regime, chamemos-lhe assim, a população desobedeceu ao Exército iniciando um período mais popular que militar, digamos. Ainda que sobre o movimento popular tenha havido sempre um voluntarismo para manter a estrutura de estado - veremos também qual o entendimento de estado aqui.

Todas as forças partidárias, que ainda hoje existem, e mesmo as que apareceram entretanto, quer me parecer, através de uma análise que não vivi, mas que parece não ter mudado na substância aos dias de hoje, tentam, constantemente, a conservação e o reforço do Estado, mesmo que para isso tenham que reprimir e controlar movimentações sociais, como manifestações ou greves.

O que é certo é que houve também um amplo movimento popular de mobilização pós-golpe de estado. E parece que ainda que haja dias como o 25 de novembro, ou outros, a constituição é o resultado, num documento, dessas correntes que ocorreram à, e ocorrem na, sua celebração.

Pode colocar-se questões sobre isso, qual o ponto inicial que indica qual o ínicio que influencia a Constituição. Foi o 25 de Novembro? Foi o 25 de Abril? Foi anterior a isso? Qual o ponto? Ou, ele é só produto das suas circunstâncias históricas? A constituição, em si, é o quê?

Sobre as estruturas ou ópticas de Estado: não consigo precisar onde se iniciaram. Talvez, se recorrermos à historiografia, encontremos comunidades/sociedades onde já existiam ópticas hierárquicas e, provavelmente, já havia território. A Civilização Maia ou o Antigo Egito, por exemplo, não são comumente reconhecidos como entidades Estatais, mas já tinham território, estruturas, hierarquias sociais, rituais.

Digamos que, durante o passar dos tempos, em muitos territórios, mais ou menos definidos, existiu uma hierarquia onde é estabelecida uma estrutura aparentemente fixa de governantes/governados.

Podem não se ter definido como Estado, podem não ser reconhecidas, atualmente, por Estado, mas aquilo que, hoje, aqui e ali, vamos chamando de Estado, absorveu todas estas ópticas milenares e hierárquicas de controlo da população para a manutenção de uma aparente comunidade de governantes (sobre a percepção de Estado ver também o que escrevi no Ponto 6.1 do artigo publicado no blog).

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2. Exercício

A historiografia impele a várias coisas: qual o momento de transição? qual a época anterior e a época posterior? quais as novelas sobre a vida real? o que separa uma época da outra? a modernidade da idade média, e estas da antiguidade, entre outras.

Peço-vos para fazerem o exercício de que cada comunidade, ao longo da história, sempre teve os recursos para as suas manutenções de vida, ainda que com violência, as comunidades foram sendo, misturando, manifestando.

Que havia saberes e práticas que foram recursos de existência para as suas manutenções, pressupondo até que os recursos que foram aparecendo, ao longo do tempo, em cada comunidade, eram, eles mesmos, também, elementos de emancipação. Mas, ao mesmo tempo, vai havendo uma superestrutura, nas palavras de Gramsci, ou correntes hegemónicas, que através de violência e controlo (da população e entre ela) se aproveitam para manter a essencialidade das coisas. Parece-me que foi assim ao longo do tempo, e vai sendo assim agora.

Segundo o conhecimento disciplinar da história, da compreensão linear do tempo, e de um certo entendimento entre códigos linguísticos, o conhecimento das primeiras comunidades sobre os ciclos do sol e da lua, do céu, dos rios e mares, da fauna e da flora, foi através de números, e não palavras.

Nessa altura, não havia distinção entre humanos e animais e, hoje em dia, parecem ser só os primeiros que a fazem. É possível, também, que houvesse outro entendimento sobre os números e que os números dessem um entendimento que hoje não conseguimos ter. Aliás fomos inundados de números, o calendário, as horas, o crédito e o débito, segundos, e outros, que são imposições dessa tal superestrutura.

O que quero dizer com isto que estou para aqui a falar?

Peço-vos que em vez de olharem para isto pela historiografia, que tenta no fundo delimitar, recortar, justapor, contrapor num sentido sempre linear e de separação do próprio tempo. Tentem ver o movimento da superestrutura ou das correntes hegemónicas, como quiserem, de forma continuada e permanente.

A cada elemento que eu tenho chamado de manutenção de comunidade, mas que podemos falar, penso, num elemento de emancipação, é sempre absorvido pela superestrutura como opressão, num certo movimento contínuo, permanente, no agora.

Veja-se o exemplo dado por Foucault no Vigiar e Punir que refere que a primeira utilização da arquitetura funcional foi para construir hospitais, a segunda foi para construir as prisões. Dá com uma, tira com outra. Dá mais vida por um lado, mas pune, distendido no tempo, a vida pelo outro. Uma espécie de negócio com o tempo e com a vida.

Eu penso que isto nos poderá remeter para o plano do livre arbítrio e do determinismo. Eu não me assento nesta visão dicotómica. O meu entendimento é que essa superestrutura, esse movimento permanente hegemónico, define a essencialidade e consegue ter o controlo milenar, segundo esse entendimento linear do tempo. Ao mesmo tempo existe sempre algo que foge do controlo, que é o que permite movimentos emancipatórios mais intensos, mas que nunca superaram, nem superam, segundo a atual compreensão, agora, essa superestrutura, essa última peça do dominó, em que mete, tudo, na horizontal, sempre.

Ainda sobre o 25 de abril, o PREC e a Constituição, houve algum questionamento sobre o sentido de fronteiras? Houve algum questionamento sobre a questão da justiça? E nisto faço um bolo: justiça para ricos e uma justiça para pobres, pode chamar-se justiça? A extensão das prisões, e não a sua abolição, o sistema psiquiátrico e familiar andar de mãos dadas com aquilo que o sistema tem de pior, e, bem, o do grosso do sistema penal. Se se questionou a criminalidade e a exclusão social, como próprio produto do Estado. Talvez no meio se tenha questionado, mas parece que essas exclamações são silenciadas.

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3. A Constituição

A Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) é considerada, segundo o complexo disciplinar legal e de Estado, como o documento com mais valor no país. Todas as leis produzidas, a ação da administração pública e toda a atividade privada, tem que respeitar os trâmites constitucionais, não podendo ir em sentido contrário. É verdade que existe discussão europeia, mas para o caso não interessa, uma vez que a legislação e a regulamentação europeia tem que ser aprovada no parlamento ou executada pelo governo.

Pensarão, os mais céticos, que estamos a falar de leis. Com toda a sua extensão e com todas as suas limitações. Sim, mas quero trazer-vos algo do nosso regime e complexo legal. Algo que não me parece ser comum nos restantes países. E não, não é sobre a imparidade da eleição presidencial que tenho vindo a falar, é sobre outras questões que me parece que pode ser útil que tenhamos um entendimentos sobre elas. Penso também que estas questões peculiares se devem a conquistas que o PREC nos deixou. Saibamos, hoje, olhar para elas e agarrá-las.

Antes, ainda, dizer que, em consequência dos poderes institucionais vigentes, desde 76, aplicou-se mais esforços na aparência de normalidade quanto ao “normal funcionamento das instituições” e a questões como a aparente “separação de poderes”, aplicando-se menos esforços no aprofundamento e concretização dos direitos fundamentais na vida das pessoas. “Garantir os direitos e liberdades fundamentais” “são tarefas fundamentais do Estado” (artigo 9º da CRP).

Parece que, por algo, há possibilidades que não são exploradas no discurso público e que acabam por não ter um acolhimento junto dos tribunais. Muitos profissionais da área do direito não o defendem, nem aplicam nestes termos os direitos fundamentais. Na minha opinião, quem não o faz está a fazer um mau serviço.

Uma vez que, segundo a lei e as suas instituições, todos somos devedores de conhecedores dela, parece-me que, por isso, com agência podemos ser, também, seus interpretadores.

Parece-me ser necessário entender no regime jurídico português que nenhuma ação da administração e da classe de governantes, empresas, ou qualquer pessoa nas suas funções, pode ferir os preceitos constitucionais, e os direitos fundamentais em sentido amplo quer estejam, quer não estejam, em diplomas constitucionais (por força dos artigos 17º e 18º da CRP). Nenhuma lei, em sentido amplo, seja nacional ou regional, do parlamento ou do governo, ou de outra, pode ser produzida sem corresponder com vista à efetividade dos direitos fundamentais, ou sem uma justificação constitucional. Isto vincula todos os institutos públicos e instituições privadas (artigo 18º da CRP).

Note-se que os direitos fundamentais têm a força constitucional dos Direitos Liberdades e Garantias (doravante DLG’s) e podem ser encontrados, tanto noutros capítulos não referentes exclusivamente à consagração de DLG’s (Título II da CRP), tanto noutros diplomas legais, decorrendo, como já vimos, do artigo 17º da CRP.

O Direito à Habitação (nº 1 do Artigo 65º da CRP) que se encontra no Título III - Dos Direitos Económicos Sociais e Culturais é um direito fundamental para efeitos dos artigos 17º e 18º da CRP, e, por isso, deve ser tratado como DLG de natureza análoga - com o mesmo regime.

Portanto: a CRP é o documento com mais valor no complexo legal e, por força constitucional, os direitos fundamentais, que podem ser encontrados no documento ou noutros (artigo 17º da CRP), têm uma força legal distinta (artigo 18º da CRP).

Vejamos, agora, com mais atenção o artigo 18º nº1 da CRP: “os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”.

O que quer dizer isto de serem “diretamente aplicáveis”, ou de terem aplicabilidade direta?

Que podem ser invocados pelo cidadão e aplicados a qualquer momento pelo tribunal, que, como acrescenta o artigo, “vinculam entidades públicas e privadas” e que podem ser invocadas sobre ações, leis ou regulamentação.

É verdade que este tema tem grande discussão, como aliás quase todos na área do direito, e muita coisa pode ser encontrada sobre o artigo 18º da CRP e da aplicabilidade direta dos direitos fundamentais de natureza análoga à dos DLG’s (artigo 17º da CRP).

Quero ainda falar sobre outros institutos legais que podem ser conjugados com a aplicabilidade direta dos DLG’s, e direitos fundamentais de natureza análoga. Que são os institutos de exclusão ilicitude, cujo mais conhecido deve ser a legítima defesa, mas há outros dois: estado de necessidade e ação direta. São institutos que aparecem em diversas áreas do direito e são tidos quase como fundamentais no regime jurídico de diferentes países.

Estes institutos de exclusão da ilicitude permitem, à partida, atos que seriam considerados, abstratamente, ilícitos, em determinado contexto, pelo terem sido cometidos pela defesa de outros direitos, igualmente ou mais importantes/fundamentais, não serem ilicitamente considerados.

Ainda que haja outros institutos que possam relevar para a compreensão do ordenamento jurídico, como por exemplo o conflito e a colisão de direitos fundamentais, o entendimento sobre se determinado direito pode ser afastado em virtude da defesa doutro parte de uma compreensão sobre a necessidade e a proporcionalidade, que são questões mais interpretativas que objectivas, digamos.

A verdade sobre o valor constitucional, ainda que possa ser, em certa medida, determinado pela superestrutura é também, parece-me, desenhado nesse tecido social a que vamos chamando de Estado, e que nos cabe esta defesa de direitos fundamentais, quando disciplinarmente nos inserimos nesta discussão ou temos contacto com institutos ou instituições. Por hipótese, a ocupação de uma habitação por alguém que não tem uma, nem prejudica o direito à habitação de outra, parece poder ter acolhimento de não ilicitude no nosso ordenamento jurídico.


Vila Nova de Gaia 1 de abril de 2025

Pedro Selas



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