Por Alfredo Soares-Ferreira, em Blog,
As redacções agitam-se com o anúncio.
Não as (redacções) dos jornais da burguesia, com as suas máquinas de propaganda afinadas para o espectáculo mediático. São centenas, milhares de redacções de miúdos da escola primária, rabiscadas com lápis de cor, canetas de feltro e letras tortas, espalhadas por mesas de madeira gasta em salas de aula de norte a sul de Portugal. “A Tia Felicidade para Presidente!” escrevem, com corações e estrelas desenhados nas margens. As crianças, com a sua sabedoria desarmante, sentem que Felicidade Dias Vitória não é só um nome, é uma promessa.
Felicidade Dias Vitória, 48 anos, é uma figura improvável. Não vem dos corredores do poder, não tem apelidos sonantes nem doutoramentos em universidades privadas. É auxiliar de acção educativa numa escola pública em Setúbal, conhecida por abraçar as crianças, ouvir as suas histórias e ensinar-lhes que a bondade é uma força mais poderosa que qualquer decreto-lei. Tem cabelo ondulado, tingido de roxo, usa óculos redondos e um sorriso que desarma até o mais cínico dos burocratas. Ninguém sabe ao certo como começou, mas a campanha nasceu num qualquer recreio, entre jogos de bola e conversas sobre sonhos.
“Se a Tia Felicidade fosse Presidente, ninguém ia ter fome na escola”, disse a pequena Matilde, de 8 anos, numa redacção que se tornou viral nas redes sociais. A frase, escrita com letra cor-de-rosa, foi partilhada por uma mãe orgulhosa no X, e em horas o país inteiro falava da “Tia Presidente”. Outras crianças juntaram-se, escrevendo manifestos ingénuos mas devastadoramente sinceros: “A Tia Felicidade dá-nos bolachas e ouve-nos quando estamos tristes”. E diz que todos podemos ser importantes, mesmo os mais pequeninos. As redacções tornaram-se cartazes, os cartazes viraram frases precedidas pelo símbolo “#” (a que chamam “hashtags”) e assim se formou um movimento.
A candidatura de Felicidade não vai seguir as normas e regras burguesas. Não haverá comícios com bandeiras e frases institucionalizadas sem conteúdo, nem debates nas televisões, com perguntas ensaiadas. Em vez disso, haverá piqueniques nos jardins públicos, onde a Candidata vai aparecer com cestos de pão, queijo e sumo, privando e conversando com quem lá vai, crianças, pais, avós, até os sem-abrigo que não são convidados para coisa nenhuma. A sua campanha não tem financiamento de bancos ou empresas, sendo sustentada por donativos de mercearias locais, com bolos caseiros e moedas juntadas por miúdos que esvaziam os mealheiros, por associações e cooperativas de cidadãos, enfim por trabalhadores organizados (ou não) nos sindicatos e outros grupos.
Os partidos tradicionais, vão ser apanhados desprevenidos e irão decerto tentar ridicularizar a campanha e a Candidata. “É uma brincadeira de crianças”, começaram logo a dizer os comentadores sentados nos estúdios, que pretendem saber pensar por todos nós.
As ditas sondagens já começaram, ainda antes do anúncio da candidatura, a dar sinais de alguma inquietação, parecida com a dos tais “mercados”, que não aqueles onde fazemos compras. Um perigo, se acontecer mesmo, arriscam as concubinas do poder burguês.
No discurso de apresentação, Felicidade não fala em PIB, défice ou geopolítica. Fala em casas quentinhas para todos, em escolas com telhados que não pingam, em médicos que chegam a tempo, em justiça para os pobres, em salários dignos. “Se uma criança percebe o que é justo, porque é que os adultos complicam?”, perguntava ela num vídeo caseiro, gravado por um adolescente com um telemóvel, dois dias antes da apresentação oficial. O vídeo tem 3 milhões de visualizações em vinte e quatro horas.
A burguesia política entra em pânico, os burocratas tremem. Os painéis publicitários de grandes dimensões (os tais “outdoors”) dos candidatos “sérios”, com slogans como “Portugal Forte” ou “Futuro Seguro”, contrastam (e de que maneira) com os desenhos coloridos que as crianças colam nas paragens de autocarro, “Tia Felicidade, a Presidente”. Felicidade propõe-se organizar assembleias de bairro e de freguesia, onde todos os cidadãos terão voz, desde o pescador reformado até à adolescente que quer salvar o planeta, em vez dos costumeiros “debates”, mais ou menos idiotas.
“A democracia burguesa, com as suas regras rígidas e jogos de poder, nunca mais será a mesma”, diz Felicidade, quiçá sem perceber que, ao dizer isto, está a destruir com as palavras o edifício do Poder. O tempo passa a ter uma outra dimensão, o da relatividade do discurso, que ora se desconstrói e inunda a mente conspurcada das pessoas, há tanto tempo dominada e estupidificada. Diz ela, ingenuamente, que dessa forma, “os cidadãos, inspirados, começam a exigir mais transparência, mais justiça, mais humanidade”.
Com o discurso de apresentação, FELICIDADE acredita na VITÓRIA, nos DIAS que correm no caminho para Belém, um palácio que pretende transformar em casa comum.
Entretanto, nas escolas, as crianças continuam a escrever redacções.
Alfredo Soares Ferreira
25 junho de 2025
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