Por Pedro Selas, em Blog
NOTA INTRODUTÓRIA: Este texto é feito em colaboração entre a revista InComunidade e a comunidade país sem amos, escrito e assinado pelo autor Pedro Selas.
O título é provocatório, talvez não haja dicotomia entre o plano material e imaterial, assim como outros planos dicotómicos, como por exemplo, outro provocatório: verdade/falso. Eles estão fundidos e os jogos/regime de verdade os dividem. Parece ser só nessa divisão ficcional, ou jogo conceptual, que os podemos conceber os tais planos separados.
Além dos poderes plasmados na constituição atribuídos à Presidência da República refere-se também a magistratura de influência e a palavra.
No primeiro livro escrito e editado por mim(1) refiro que “no que diz respeito à nossa existência, a linguagem é a ferramenta pela qual quase tudo se organiza, nem sempre no seu sentido espontâneo, mas também nos seus códigos, como são exemplos as leis, o sistema monetário, os modos de produção e de organização, a ciência e as disciplinas, a discussão política, o funcionamento da tecnologia que nos cerca”.
A compreensão sobre a linguagem e a imparidade da Presidência de Portugal poderia levar a uma reinterpretação da força e validade da aplicação dos direitos fundamentais (também já abordado no ensaio “Os 50 anos entre o golpe de Estado e a Constituição”), onde todos podemos ser chamados a uma maior defesa, os juristas, os advogados, claro, os juízes, mas também todas as outras pessoas que fazem parte de um projecto, de uma comunidade, daquilo a que vamos chamando Portugal, enfim, uma defesa tão efectiva, tão efectiva e concretizadora dos direitos fundamentais, mais concretamente os direitos liberdades e garantias, uma defesa tão efectiva alastrada à maioria da população, que levaria a uma organização mais harmoniosa entre todos diminuindo ou mesmo eliminando os abusos de autoridade, quer do estado, quer dos grupos económicos que esmagam os seres e os recursos do planeta, quer de outras relações abusivas que se vão formando entre nós.
Uma visão emancipatória sobre a vida humana, animal, recursos, meio ambiente, pode produzir imensas alterações na forma como são interpretados os direitos fundamentais atuais, não só como direitos mas também como o acontecer na vida de cada um de nós. Os poderes institucionais, a interpretação e a ação jurídica poderiam ser repensadas e reconfiguradas no plano da organização social, dos recursos, do tempo, e até naquilo que somos e sentimos.
No plano prático político, na senda dos apontamentos feitos à práxis partidária, que fiz referência em dois textos anteriores(2)(3), poderia levar a alterações sobre como se compreende os processos de decisão, quer internamente, nos partidos, quer no parlamento e no governo (que atualmente só está acessível às forças partidárias).
Com um envolvimento das massas, levar a uma nova organização dos espaços actualmente geridos quer pelo capital, quer pelo estado, talvez acabando com esta dicotomia/contradição, ambas ficcionais, e não são concomitantes: tanto aquilo que vamos definindo e representando como estado ou capital vão se apoiando e vão trabalhando juntos contra a infra estrutura, a esmagadora maioria da população global, e até, como já referido, outras formas de vida de e existências. A adesão das massas, dos movimentos de luta, dos oprimidos, daqueles que sonham com uma vida digna, talvez uma nova forma de ser e estar, revolucionária ou emancipada, ou seja, de quase todos nós, juntamente com a candidatura presidencial é absolutamente essencial para a concretização desta nova organização social.
Uma e outra (candidatura e massas) não se realizam isoladamente entre si, não é uma candidatura liberal no sentido estrito político, não há uma sem a outra. Os pequenos avanços que, uma pessoa só, poderia trazer para o discurso vigente seria totalmente engolido pela superestrutura, que tentará arruinar qualquer manifestação emancipatória, e o discurso emancipatório alheado da tomada de poder não tem trazido a desconstrução dos regimes de verdade que nos dividem, isolam e oprimem, e acabamos sendo forçados a reproduzi-los na nossa vida.
Não podemos pensar numa nova forma de olhar para o conhecimento, o saber, a pedagogia, não só, mas também, o espaço escola, sem esmagadora maioria dos professores, funcionários escolares, alunos, sejam adultos ou não, investigadores, cientistas e qualquer pessoa interessada.
Não podemos conceber uma nova organização social que permita repensar o tempo e a forma como o ocupamos, os acessos, sem o envolvimento da maior parte das pessoas, dos trabalhadores atuais. Para a justiça, para a saúde mental, igual. Numa escala mundial sem a esmagadora maioria do apoio da população mundial.
Precisamos de um discurso para lá do plano moral, do plano excludente, justificativo, divisivo, em confronto, em oposição, através da delimitação, da norma e da excepção, etc.. Parece ser necessário um discurso para lá das gavetas e da segmentação do ser.
Embora o parlamento vá remetendo para tempos como a Antiga Grécia, ou Magna Carta, eram já em si sociedades patriarcais e escravocratas, como se viria a suceder no século XVIII, à denominada República, grandes centros de império colonial, que viria então a reconfigurar os regimes de saber, do desenvolvimento industrial e de encarceramento.
A República, dividindo-se em esquerda e direita, impondo a democracia e o estado liberal, não aconteceu sem antes ter havido implacável repressão de motins organizados por agricultores e artesãos, que ansiavam por melhores condições de vida. Esse tal acordo tácito, entre a esquerda e a direita, apropriando-se dos meios de produção e do monopólio da violência de estado, rapidamente reconfiguraram os regimes/jogos de verdade, chegando ao estado das coisas como o agora conhecemos.
Penso que não devemos confundir os regimes politicos, com quem vive sob a sua égide, pode não estar em seu apoio, como nos ensina Amílcar Cabral: “Nós nunca confundimos o ‘colonialismo português’ com o ‘povo de Portugal’”. Frase abusada também por governantes portugueses atuais para lavar o sangue das suas mãos enquanto continuam a chacina.
Há uma justiça para ricos e outra para pobres, uma justiça ilegal, uma escola doutrinadora, a construir mais e mais prisões e manicomios, e por aí fora. É também destas contradições que vive o estado das coisas, e são estes estados de contradição que necessitam de ser ultrapassados. Quer na monarquia quer no estado liberal como o conhecemos, há uma pressuposição de governados e governantes, uma justiça injusta, escola onde as pessoas não podem ser elas próprias, e aprendem a cumprir papeis, para nos cansarmos mais, construirmos mais e prisões e mais manicómios, mais locais produtivos, nos dividirmos, nos culparmos, nos derrotarmos, e por aí adiante. É também destas contradições que vive o estado das coisas, e são estes estados de contradição que necessitam de ser ultrapassados.
Esta transformação, através do interior dos partidos, que leve a uma tomada de governo e parlamento emancipatória parece totalmente vedada em Portugal e na esmagadora maioria dos países. Portugal é uma rara excepção, na cena internacional, onde é possível ocupar Belém sem o crivo partidário.
Seria um grande desperdício, de quem se envolve em manifestações, acção social e política de transformação, onde os recursos são parcos, não se envolva para 2026 num movimento que liberte definitivamente todas as pessoas, para podermos ter todos mais acessos (recursos).
Vou deixar aqui também o último parágrafo do livro que escrevi e editei: “O comprometimento da presidência com a maior parte das pessoas que é violentada e oprimida poderia levar a uma mudança de discurso no país, mais concretamente na comunicação social e nos partidos, ainda que no início passe por algum período de violência nestes mesmos meios. Permitirá também que a máquina do estado não ande em roda livre para reprimir a emancipação. Não irá só depender da pessoa eleita, ela será um meio, como nós fomos para a sua eleição, e continuaremos a ser para a construção de lugares justos e livres à nossa volta.”
23 de julho de 2025
Pedro Selas
[Ver todas as publicações do autor]
_______________________
(1) “Pequenos ensaios de uma presidência para um país sem amos”, Pedro Selas, ed. autor, 2024
(2) “Sou o único? #NoStateSolution”, Pedro Selas, na comunidade país sem amos
(3) “Os 50 anos entre o golpe de Estado e a Constituição”, publicado em InComunidade em parceria com a comunidade país sem amos
.jpeg)
Comentários